Entrevista a António Teixeira Fernandes

     Neste mês em que se completam dois anos sobre o falecimento de António Teixeira Fernandes, publicamos uma sua entrevista inédita realizada no Café Luso, no Porto, por António Valente e Ricardo A. Pereira, no verão de 2018. 

    Tomando como ponto de partida as ideias contidas no seu livro "Desigualdades sociais, cidadania e práticas democráticas", o pensador e fundador do curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, expõe a sua larga visão histórica dos valores societais que definem a época contemporânea, bem como se pronuncia sobre os desafios mais imediatos com que deparamos hoje, sejam eles a falência da solidariedade perante o estado social, o alastrar da pobreza e da desigualdade ou o avanço das retóricas extremistas e nacionalistas no contexto europeu.

    Expressão profunda da abrangência do seu pensamento, publicamos então esta entrevista para que se não percam as suas palavras.

 


 

(Entrevistadores) Duzentos anos volvidos após a Revolução Francesa, considera que se evoluiu mais no campo da liberdade ou da igualdade?

(António Teixeira Fernandes) A Revolução Francesa proclamou três elementos sociais fundamentais: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Destes, o elemento mais dinamizador da Revolução Francesa foi o liberalismo, assim, foi com naturalidade que a certa altura se desse maior ênfase à liberdade em detrimento da igualdade. Neste processo a componente da solidariedade ficou mais subalternizada. O liberalismo avançou como projecto tri-partido: liberdade, igualdade e fraternidade mas, centrando-se fundamentalmente na liberdade, obviamente esqueceu a dimensão da igualdade. A democracia vive das três dimensões - da liberdade, da igualdade e da solidariedade. É, no entanto, um equilíbrio difícil de se conseguir - ou se acentua a igualdade, ou se acentua a liberdade, reduzindo a igualdade. Os sistemas políticas ocidentais avançaram pelo caminho da liberdade, o socialismo tentou fazer a contra-posição mas com elevados custos no campo da liberdade. Rousseau foi simultaneamente um inspirador da liberdade e da igualdade.

(Ent.) Porque considera que existem posições tão inconciliáveis entre muitos dos que defendem a liberdade e muitos dos que defendem a igualdade?

(A.T.F.) Esse problema tem que ser abordado de acordo com o ponto de vista que se enfoca. Se o problema for tratado de um ponto de vista meramente racional, a tendência da razão seria a de encontrar o equilíbrio. O problema está quando se entra no campo da política e a razão deixa de operar como razão pura. Como diz Max Weber, a política não se faz só com a cabeça, o que significa que quando esta problemática é assumida pela política, é assumida com uma componente profundamente ideológica. A componente ideológica introduz um atentado contra a razão e contra a democracia no sentido que faz a apologia do discurso único. 

Na ideologia liberal o discurso único é a liberdade simples sem qualquer preocupação com a justiça social. Por outro lado, a ideologia socialista tende a negar a componente da liberdade na medida em que a liberdade impede a realização da igualdade plena proposta pelo socialismo. Algo é certo: não há democracia sem se atender a estes dois componentes. No campo socialista, a vertigem pela igualdade levou a uma tirania total, no campo ocidental da liberdade pura criou-se, muitas vezes, uma democracia que é a negação dela própria, com enormes desigualdades, desigualdades que chegam a colocar em causa a burguesia que é ameaçada pela questão da segurança. A pobreza é uma ameaça à liberdade da burguesia.



(Ent.) Considera que as desigualdade estão a colocar em causa a existência das democracias, por exemplo, com o despontar de toda a sorte de movimentos populistas?

(A.T.F.) O populismo é um fenómeno multifacetado. Tem a sua componente de extrema direita e de extrema esquerda. Na Europa encontramos um nacionalismo feroz motivado pelos valores de direita (identidade, tradição, que são o substrato da manutenção do status quo). A extrema esquerda apela à revolta pelo apontar das desigualdades indignas e degradantes. Há aqui uma dicotomia que tem a sua face político-nacionalista. Eu sou patriota, mas não sou nacionalista. O ideal da Europa – um espaço de abundância, de fraternidade e de igualdade para todos – à medida que se vai gorando leva a que os países se vão fechando, sobretudo quando sentem que a dada altura perdem a sua identidade e a sua soberania. Na realidade a soberania é hoje uma certa miragem na medida em que, com a globalização, os países são apenas relativamente soberanos. 

Quando se atinge os elementos estruturantes da identidade isso dá uma força enorme aos populistas. Do ponto de vista político os populistas são oportunistas uma vez que instrumentalizam a população capitalizando o descontentamento e indo ao encontro das aspirações da população com o chamado “discurso fácil”. Tudo isto encontramos na Europa atual. Uma Europa que teve o sonho da unificação na e pela democracia, após a II Grande Guerra, após os sonhos de unificação do passado – da cristandade medieval e mais tarde, no século XVIII, da unificação dos intelectuais, da cultura etc.

(Ent.) Encontra-se mais pessimista ou mais optimista quanto ao futuro da U.E.?

(A.T.F.) A minha postura perante a Europa é uma postura de optimismo que é uma postura normal em mim. Vejo fenómenos que são perversos neste processo, até porque no fundo vejo que estamos a ter fenómenos de “nacionalismo de abundância”. Países ricos que tratam de forma discriminatória e preconceituosa os países pobres do sul. Até dentro dos próprios estados considerados consolidados se verificam estes fenómenos com regiões ricas a mostrarem pouca solidariedade com as mais pobres – caso da Catalunha por exemplo. Uma Europa que caminhava para a unidade, para a partilha e solidariedade, para a unificação e de repente se vê confrontada com um processo de desagregação profunda. Tudo isto porque as populações se sentem mais aconchegadas naquele núcleo identitário onde sempre viveram. Ninguém quer perder essa segurança. Isso acontece na ciência como acontece na vida política e social. A própria ciência habitua-se a determinadas teorias e depois deixa de ver a realidade que muda porque para ver essa realidade tem que mudar de teoria.



(Ent.) Certos pensadores, bem como alguns políticos, consideram que uma resposta adequada às mudanças económicas crescentes, originárias de uma progressiva automatização dos processos produtivos, que conduzem ao aumento do desemprego, passaria pela criação de um rendimento básico universal. Concorda com a existência de um rendimento nesse género?

(A.T.F.) Nós hoje dispomos de um património teórico que nos fala do fim da sociedade de trabalho. Isso é reconhecido por diversos autores e é patente aos olhos de todos. Deu-se uma mudança não só quantitativa mas, sobretudo, qualitativa: passou-se da sociedade do trabalho para a sociedade do conhecimento. Quem na sociedade de hoje possui o conhecimento possui o poder. 

    A cidadania cria uma relação entre direitos e deveres. Os direitos só podem ser vistos à luz das concomitantes obrigações. Não concebo um cidadão passivo, todo o cidadão tem que participar na sociedade. O ser humano não pode ser visto como um ser animal a quem se dá alimento e se deixa andar a viver. Tem que ser mais que isso. É uma pessoa que se constrói relacionando-se com o outro. Não concebo que alguém tenha o estatuto de pobre gravado na testa como um sinete. É necessário que ele seja ativo. 

    Partindo destas concepções, posso dizer que serei contra a atribuição de um rendimento a alguém que simplesmente se recuse a trabalhar. Não é o trabalho que falta, o que falta é a clarividência para compreender que ele está em vias de mudar radicalmente, sem imaginação bastante dos interventores públicos e privados, para o organizar de outro modo. 

Dito isto, o espectáculo da pobreza que hoje impera nas sociedades dá uma visão degradante de gente abandonada na orla daquilo que é gente, sem atividade nenhuma. Isto não é vida humana. A democracia apenas se afirma se as pessoas tiverem acesso ao necessário a uma vida digna e tenham uma participação nessa sociedade. Na atual sociedade do conhecimento, que exige menos força de trabalho, é necessário redistribuir melhor essa produtividade mas não ao ponto de tornar as pessoas passivas. As pessoas devem recusar ser supérfluas e inúteis na sociedade. Em qualquer sociedade mas sobretudo na democrática onde se realça muito a condição de cidadão, cidadão activo. Oponho-me a uma caridade estatal passiva e massiva. O estado deve atuar no sentido de ir ao encontro das necessidades concretas de cada cidadão.


(Ent.) Apesar das dificuldades civilizacionais do presente reconhece que tem existido uma evolução positiva nas condições de vida em certas regiões do planeta como seja partes da Ásia ou da América Latina?

(A.T.F.) Eu sigo muito a posição Kantiana que afirma que a sociedade desenvolve-se e progride no sentido do melhor. Mesmo em face da pobreza atual há que reconhecer que têm existido avanços e que, nas últimas décadas, assistiu-se a uma melhoria substancial das condições de vida. Basta pensarmos nos bairros residenciais dos trabalhadores das fábricas, aqui mesmo no Porto, durante o século XIX: eram espaços terríveis de propagação de doenças sem quaisquer condições de salubridade. À medida que vai evoluindo a sociedade, também as pessoas vão ganhando cada vez mais consciência da sua dignidade enquanto ser-humano. São mais exigentes. Até porque a doutrina dos direitos do homem vai progressivamente sendo incorporada no tecido social. Enquanto que a miséria do passado era uma miséria escondida, aceite e envergonhada hoje não se passa assim. O olhar democrático do cidadão não suporta ver na rua demonstrações indignas de miséria.



(Ent.) Alguns pensadores consideram que o estado-social pode ter o efeito negativo de levar os cidadãos a um certo alheamento, um desinteresse, a uma indiferença face aos problemas sociais no sentido em que leva-os a pensar que o estado “resolve”. Como interpreta esta consideração?

(A.T.F.) O que existia na sociedade tradicional era um auxílio dos pobres pelo próximo, uma sociedade de providência. Era a família, os amigos e as paróquias que prestavam um auxílio. Prova disto mesmo foi a chamada “lei dos pobres” da Inglaterra. 

    Mais tarde deu-se a criação do estado-providência. Não podemos deixar de reconhecer que o estado-providência veio ao encontro de um certo individualismo que vinha surgindo já nos países ocidentais. O estado-providência criou um vazio social entre o individuo e o estado, ou seja, o individuo ficou só perante o estado porque desapareceu o apoio dado pela sociedade. O estado-providência deu o atributo de assistido ao pobre. 

    Este vazio social provocou a dissolução do tecido social que envolvia cada individuo. Já Tocqueville observava no século XIX que o estado, destruindo os corpos intermédios, cria ao mesmo tempo as condições para a ditadura e para a democracia, para a servidão e para a liberdade. Os estados-sociais de hoje confrontam-se com o paradoxo de, ao ir em auxílio, provocar simultaneamente a destruição de um suporte. Muitos dos que hoje defendem uma intervenção do estado não deixam de defender uma intervenção mais pessoalizada dirigida a pessoas concretas e não de uma forma abstrata. 

    É necessário ainda deixar de identificar formação e escolarização, para pensar na criação de competências ao longo da vida. Isso supõe uma alteração profunda das nossas representações, fazendo da formação uma dimensão permanente da vida das pessoas e das empresas. Só repensando a pluralidade das vias de formação, se conseguem novas competências para o amanhã, com o tempo de formação permanente integrado no tempo de trabalho. Desse modo, se obtém o empoderamento das pessoas, tornando-as capazes de serem o principal factor da sua libertação dos estados de pobreza e de exclusão social.


(Ent.) Quem atualmente consome notícias fica com a impressão que a violência está descontrolada, que vivemos uma crise de valores. Acredita nessa ideia?

(A.T.F.) A violência existiu em todas as épocas, mesmo naquelas épocas em que imperava uma densidade religiosa, por exemplo a idade média. A sociedade ocidental contemporânea tem várias componentes na sua raiz – para além da cultura greco-latina, do estado de direito, tem a componente cristã que a certa altura ensinou e transmitiu a dignidade humana como valor universal. Existem componentes que formaram esta sociedade actual que a certa altura, do ponto de vista ideológico, político etc., se foram desagregando, foi perdendo essa configuração. 

    Kant admite que a sociedade é sociável e insociável porque mesmo o conflito é necessário à sociedade humana, faz avançar a sociedade. Kant observa que essa conflitualidade é inerente à vida humana na medida em que não temos todos os mesmos interesses. Considero, no entanto, que na sociedade de hoje podem existir factores que podem potenciar surtos de violência. As pessoas suportam até a um certo ponto. Tolerar também tem um prazo. A partir daí as pessoas podem explodir e muitas vezes explodem em violência. 

    Nesta perspectiva a violência é algo natural à própria sociedade porque cria dinamismo. Ela é perversa quando é uma violência gratuita e hoje vemos muito disso – a agressividade pela agressividade - uma sociedade que é incapaz de construir sem destruir.


(Ent.) A sociologia poderá ir mais longe, passando do clássico “observar e descrever” à constituição de novos modelos de organização social?

(A.T.F.) Eu sou partidário de uma sociologia científica, produtora de conhecimento, não sou defensor de uma sociologia tipo “engenharia social”, normativa. Nessa altura serve de instrumento para regimes políticos e tanto serve para libertar como para oprimir. Se, a certa altura, a sociologia avançar no sentido de se transformar numa engenharia social estará mais preocupada em prestar serviços a quem deles necessita do que propriamente em produzir conhecimento. 

    A sociologia, como eu a entendo, fornece aos atores sociais, políticos, económicos etc. conhecimentos que lhes permitem ver mais claramente em que sentido devem orientar a sua acção, no sentido do bem-estar social. Tem de facto esse papel mas, se a certa altura, se torna em “engenharia social” nega esse papel de produtora de conhecimento. Torna-se uma prestadora de serviço recebendo dinheiro por isso. É subvertida na sua matriz inicial que é conhecer a sociedade e dar aos atores sociais o conhecimento para se poderem situar e agir. O conhecimento é transformador da vida das pessoas. É uma arma potente de transformação no sentido não de qualquer ideologia política mas no sentido de permitir às pessoas situarem-se e atuarem.


(Ent.) Se esta entrevista ocorresse daqui por cinquenta anos estaríamos a falar destes temas ou de outros?

(A.T.F.) Os problemas devem ser analisados sempre em função das suas circunstâncias. O próprio Ortega y Gasset dizia “Eu sou eu e a minha circunstância”. Fazer uma avaliação da análise que poderia ser feita daqui a cinquenta anos é um exercício de futurologia. A sensibilidade que tenho é a de que daqui a cinquenta anos estaríamos a discutir problemas completamente diferentes destes. 

    Se eu admito que a sociedade progride para o melhor, no seu arrastamento para o melhor produz imensa pobreza. Que sociedade será em termos de liberdade, igualdade, solidariedade daqui a cinquenta anos? Já para não falar em termos da componente ecológica, será que existirá este planeta desta maneira? Tenho o pressentimento que tal como muitas das questões debatidas nos séculos passados, também no futuro estaremos com problemas diferentes. Estaremos também com perguntas diferentes. Mais importante que as respostas são as perguntas.


(Ent.) Na década de oitenta do século passado trouxe o curso de sociologia para a universidade do Porto, como foi esse desafio?

(A.T.F.) Foi um desafio entusiasmante. Nessa altura já era professor catedrático de filosofia. Naquela altura os professores catedráticos estavam destinados a um certo “descanso eterno”. Não necessitavam de prestar provas. Senti que esta componente do conhecimento faltava na Universidade do Porto. A norte de Lisboa ainda não existia nenhum projecto semelhante. A certa altura entendi que era necessário. 

    Entusiasma-me, motiva-me um projeto novo. Todo o ponto de chegada é um ponto de partida – seja na escrita de um livro, numa investigação etc. Tive sempre esse espírito, um espírito de criança. Tentar ver por dentro as coisas. Eça de Queirós a dada altura diz que o português quando viaja afirma andar por fora e ele diz “mas que fastio é andar por fora, quando bom é andar por dentro” essa necessidade de analisar e andar por dentro das coisas, tirando-me do meu conforto, foi sempre uma mola que me movimentou, quer na investigação, que em toda a atividade que desenvolvi dentro e fora da Universidade.

 

António Teixeira Fernandes deixou-nos uma vasta obra tendo, na Estratégias Criativas, publicado ainda pequenas biografias de Max Weber, Émile Durkheim e Georg Simmel, bem como vários livros dedicados à relação entre a Igreja e a Sociedade na época contemporânea em Portugal, tais como Igreja e Estado (À volta do contraditório Bispo do Porto) e Afrontamento Político-Religioso na Primeira República. Todos estes volumes encontram-se disponíveis no nosso site.

 

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