Com Que Voz Escreveria de Ana Margarida Borges



Há autores que nos ensinam a encontrar o belo da existência.

Ana Margarida Borges, poetisa cuja pena nos trouxe Talvez Se Me Emprestares Um Desses Versos e Com Que Voz Escreveria, é uma dessas autoras. 

Nascida em Vila Pouca de Aguiar, licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade do Porto com pós-graduação na Escola Superior de Educação em Animação Comunitária e Educação de Adultos. É professora e participa regularmente em leituras públicas de textos poéticos. 

Acima de tudo, é poetisa e, em jeito de apresentação, aqui publicamos, hoje, palavras que lhe foram dedicadas aquando do lançamento do seu livro Com Que Voz Escreveria, em 2023, n'A Brasileira.

 

 


 

 

Com que Voz Cantarei


As pessoas que são convidadas a apresentar um livro tendem ou esforçam-se por descobrir a alma/essência do livro. Foi nesse percurso, e nessa tentativa de descoberta, que eu encontrei uma Carta inédita e, ao mesmo tempo, espúria, que a autora, incautamente, deixou entre os seus poemas e que eu, despudoradamente, me atrevo a revelar nesta apresentação. Assim, para apresentar este livro, escolhi uma estrutura narrativa composta por preâmbulo, que inclui três poemas da autora, a já mencionada carta e uma declaração falsa. O preâmbulo, por definição, vem no início. Mas, por respeito à liberdade narrativa, vou colocá-lo no fim e transformá-lo, com este passo de mágica, num epílogo.


I Parte
Declaração falsa


Eu, Ana Margarida, escrevi as palavras agrupadas em forma de poema, distribuídas pelas quatro estações do ano, para que o Antero Afonso as descodificasse e as reagrupasse em prosa poética de modo a revelar, nesta apresentação, de que forma trago a alma vestida.

Pedi-lhe apenas que todas as palavras que utilizasse fossem retiradas deste
livro. Todas, sem exceção.

Por isso, se gostarem da carta que vão ouvir ler, gostarão, inevitavelmente, do meu livro. Se não gostarem, existe, ainda assim, uma forte possibilidade de gostarem do livro, pois como veremos durante este nosso encontro, ele é muito mais do que a seleção feita pelo apresentador. Espero que a sua argúcia vos conduza até mim, porque foi para isso que o convidei. Não é teatro, mas serve-me de lição, porque gosto da desordem.
 

Assina: Ana Margarida (assinatura não reconhecida notarialmente)


II Parte


Carta espúria, porém, inédita, intitulada Escrevi com esta VOZ que a autora de forma dissimulada por entre os seus poemas escreveu a um dos seus amores/leitores:


“Chega o verão com seu braseiro, água, sol e vida louca e os beijos da tua
boca. Que sandeiro me saíste. Deixavas que eu entrasse mar adentro
arregaçando a saia e o teu sorriso maroto procurava o meu olhar. Na areia
molhada de nudez e maresia fazias do meu corpo um areal infinito e nele
caminhavas ondulante até te perderes de mim. 

Não prescindo das flores que apanhavas para cobrir o meu corpo
despenteado pelas correntes intempestivas do teu mimo.

O nosso amor, como um poema, nunca está bem, e eu não quero abandonar
o meu ser ilusório de sereia pela visão distante de um príncipe encantado.

Outubro é lagar da tua doçura, trazendo sabores e saberes ancestrais,
bebendo sabiamente o milagre das cores outonais. 

– Espalha no meu corpo os teus segredos, enrola o teu silêncio nos meus
ais. Doce outono, onde o que é parece sonho.

No frio do inverno, só mesmo o calor da tua mão. Deixo que a tua mão
desça desamparada, procurando abrigo no meu corpo. Vieste para
reescrever o meu cansaço, um fio de luz iluminando ausências que me
consomem. Está frio. Árvores arrepiadas atrás da vidraça. Não sei se
queres mesmo esta morada. Chove frio nos meus braços. Prendo magnólias
ao meu olhar, pinto a penosa lentidão das horas, tricotando tédio e
lembranças no inverno do meu desassossego.

Vem aí a primavera e um outro amor me espera, mas no rasgo do decote
tenho agora mais cautela, quando me ponho à janela.

Descubro, em botão, a primavera. Primavera parideira rasga a terra, deixa
alertas, no regaço traz mil cores, com que brindo meus amores. Sei que fui
contigo, de mãos dadas, namorar a cidade pelos cravos enlaçada e sorrir
com as flores que apanhavas para cobrir o meu corpo.

Nasceu, embrulhada na luz de setembro, Margarida, que foi verdade nas
minhas mãos, como um fruto maduro que apetece colher. A luz do Douro
ao fim da tarde é sempre um vinho envelhecido, embriagando a minha alma
e os frutos do estio são gulosas geleias barradas no pão.

Nasce o Manel que me faz virar a geografia do avesso.

Vi nas cores do outono, as cores da vida inteira. Tenho histórias censuradas
cá no peito. Entro em casa, penduro a máscara e invento-me numa outra
solidão.  Há dias assim - contigo a chamares-me ainda de menina - em que
um pequeno gesto nos assombra e faz-se poema dentro de nós e o poema
vai crescendo com todas as sílabas a remendar os buracos da alma. Sobra-
me o sexto sentido que me leva toda a hora a colher o proibido.

 
Assinatura reconhecida, porém, ilegível
 

III Parte

Preâmbulo, que saiu do armário e agora se assume como Epílogo

Conheci a Ana no Teatro Universitário do Porto. Recordo-me que fizemos um exercício que consistia em contar uma história, um ao outro, utilizando apenas o olhar. Depois saíamos e cada um dizia ao grupo, sem a presença do outro, a história que tínhamos partilhado com o olhar. E ambos dissemos que havia um pássaro vermelho no meio de cada história. Eu devia ter percebido, pela cor e pelo pássaro, que estava na presença de uma poetisa, mas dei mais valor à minha imaginação do que à dela. Era a minha vaidade a sobrepor-se à realidade.  

Depois, ela foi para o Realejo, grupo de teatro, e eu para a Cooperativa de Teatro Faúlha. 

A seguir, professores na mesma escola, ouvi-a falar de Alberto Caeiro (triste de nós que trazemos a alma vestida!), como se estivesse a deixar correr conversa e eu fiquei com a certeza de que ela escondia poesia atrás das palavras de outros poetas.

Desafiava-me a concorrer às quadras de S. João do jornal de notícias, aos concursos de poesia de todas as bibliotecas, às cartas de amor do Museu da Imprensa, a todos os concursos em que ela sempre participava. Ganhava ela e perdia eu. 

Era a realidade a sobrepor-se à minha vaidade.  A versatilidade é uma característica muito presente nas suas publicações. Humor e amor, ânimo e desalento, convenção e desafio, revolução e conciliação, ironia e ternura, tudo isto é possível encontrar na escrita da Ana Margarida, como vimos na carta que revelei, mas que também podemos ver nos seus poemas. Eis três exemplos, três poemas retirados deste livro que eu, circunstancialmente, sei de cor: 

O primeiro é o mais curto, mas é nele que me vou demorar mais, uma vez que tendo dito à Ana que o escolhi, ela manifestou admiração apesar de dizer que também gostava muito dele, mas tinha amigos que lhe diziam não saber por que razão ela o incluía nesta seleção. Darei a explicação numa pequena declaração que lhe dedico. 

Sabiamente 

Creio no pássaro que os céus habita
Creio na árvore onde se demora
Creio na flor que toca e beija 
Suspiros de outono que desflora. 
Creio naquele que acredita
no parto virginal da natureza.
 
Creio nos sábios que sabiamente creem
Ser o seu deus, tamanha beleza.


«Este teu Sabiamente, Ana Margarida, é a expressão poética da relação entre a natureza e a sua beleza. É a celebração da liberdade que expressas no «pássaro que os céus habita». Repousas na árvore, símbolo da vida, do sustento e do crescimento, a paciência do pássaro que «nela se demora.» Cantas a beleza efémera das flores que o pássaro ««toca e beija» e a fugacidade da vida nos «suspiros de outono, que desflora.» E, depois, deixas a mensagem de esperança na renovação permanente manifestada no «parto virginal da natureza.» Terminas com a visão panteísta, segundo a qual Deus existe em todas as coisas, como sabem os sábios. Foi por isso que escolhi este teu poema.»


Agora a paixão e a luxúria, num quadro de sensualidade marcado pela idade e pelo desejo de transgredir. Este soneto (em lingerie), foi dedicado a um seu amigo facebookiano do amor: 

 
Meu corpo est au lit pra te querer
Volúpias de nós dois ardem no colchão. 
Não sei se pego fogo, se vou arder
Se chamo o bombeiro, o padre, o sacristão.
 
A tua lingerie suga-me os suspiros
De quem já passou há muito a mocidade.
Comprada no continente  dos Belmiros
Traz a marca desbotada da idade.
 
E nós dois em cuecas cintilantes
Saboreamos cheiros de naftalina
Guardada na gaveta prós instantes.
 
E quando tu me falas em surdina
Já eu estou noutros braços mais distantes
A palpitar de tanta adrenalina.


Finalmente, a relação entre a criatividade poética e a vida quotidiana com a interferência do mundo exterior nas atividades criativas. 

Por falar em primavera.... 

As cores já lá estão
penduradas nos braços do jardim
a transbordar a seiva do
tempo.
Aqui remete-se
ao silêncio
na casa das sílabas métricas
desavindas.
Quando estou a atingir o ponto mais exato do 
                              equinócio
com o sol no lugar ideal do corpo
                              do poema
tu entras de rompante 
a perguntar-me pelo 
sal que trouxeste dos Himalaias.
Assim se muda o rumo das rimas 
com o tempero prosaico dos dias.

 

E depois de a Ana Margarida ter terminado este livro já a claridade imensa de Clara lhe despertava novas primaveras na voz para que a possa cantar também.
 

Com que voz a escreverá, é o mistério com que vos deixo.

Antero Afonso
Setembro 2023



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